quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Falasser n.2

Caso viesse condensar
a cadeia significante
em nódulo de letra,
a imagem resultante
talvez salvasse
o mal-dito-fala-ser.
Escreveriam ventos soltos
de som e sucata de sentido.
Pinceladas de palavra nenhuma,
rastro de voz por dizer.












Max Ernst. Célèbes or Elephant Célèbes. 1921

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Palavrite


Inflama o poema...
Sentido, ressentido,
remoído ao descaso das palavras.
Insistência de nome próprio
em maltratar o corpo
que já não se sabe 
um ou outro.

[Vão esforço de arrancar
ou distrair]

O que dói é letra inscrita
nos quatro cantos 
do existir

                                                            imagem: Joan Miró. The Carbide Lamp. 1922-23

domingo, 30 de outubro de 2016

Mátria

Aqui, desde ontem, 
como se agora o depois
em prática de olhar
se vestisse,
apropriada pelo furo
de não entender nada.
Insisto livrar-me do anseio
de predizer 
as coisas que me invadem
e não tem pátria, 
enquanto eu:
Língua mãe!

imagem: Pablo Picasso. Nude on a Beach. 1929

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Língua estrangeira


Ando só, 
estrangeira à palavra.

Passeio no idioma que 

ouço em notas de batuque

(Ando só porque só sei andar) 

Exercício de ser em estado
de língua que não será decifrada.


Trabalho-me poema a
reduzir fonema 

em pó.


imagem: René Magritte

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Blue jay

As vezes que passou
veio para sarar.
Passarou por entre a
folhagem trêmula do
meu corpo, anunciou
dias melhores.
Trajado no azul, blue,
presente alma,
Jay, lhe canto como a
um Deus.








imagem: Jean-Michel Basquiat - 1981

sábado, 1 de outubro de 2016

Compasso nórdico

Sob este pinheiro branco
que nada observa
há mais de cem anos.
Me entrego às raízes,
ao vento, aos fungos e penas.
Me arreio ao compasso da dor.
Tudo passa.Tudo me rasga de terra
Eterna, nem a palavra.













Diego Velázquez. Head of a Stag. 1626

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Tempoema

Ouço o tempo
peço arrego.
Rasgo a página,
descanso chafarizes.
Algo de vapor em
água de vento.
Espreita de fogo
em olhos de dentro.
Tempo, poema,
recolho os pedaços.









imagem: Pablo Picasso. Girl with a Boat.. 1938

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Meditação

Te convido aonde
rosas se abrem.
Deixemos a matéria falar.
O sol acaba de pincelar
seu traço de luz sobre o nada.
Podemos também nos
render ao vazio.
Retornar a palavra ao devido
estado de coisa nenhuma.
Deixar os preconcebidos
anseios de nomear.
Aqui ficamos, em roupa de pétala.
Amanhã terra ínfima,
detida por resistências.


Henri Matisse. Le bonheur de vivre . 1905-1906

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Sonho azul

Então o que houve com aquele sonho azul?
Esbarrou nas próprias margens e desmanchou feito pedra de areia?
Antes cercado de auroras, agora
esta secura de velhas raízes...
O cansaço nas pernas e asas,
as manhãs sem revoar borboletas.
Um olhar distorcido de tempo
atropelado na ausência de cabimento.
Partiu pra sempre nosso azul
em vôo ressentido?
Esse pássaro efêmero silenciado
ao cimento de palavras.






imagem: Henri Matisse. The Blue Window. 1912

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Garage Sale

Um dia antes 
nos lançavamos farpas 
com os desencontros da palavra. 
Sua mensagem não me alcançava ou, antes disso, desviava 
na largura de um hábito.
Dia depois me dei conta da travessia entre 
aquelas frases inúteis e sua ausência. 
Os nomes não chegaram 
a me tocar de espontaneidade.
Ficaram para trás,
atrás de um sentido, 
do infindo desejo de
dissolver substantivos
Abrir armários 
e esvaziar gavetas. 
Abrir a casa,
livrar os móveis. 
Abrir o mundo, livrar a casa.
Um Garage Sale de páginas e apegos...



imagem: Max Ernst. Aquis submersus. 1919

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Mudez

Meu corpo, 
morada da palavra.

Antes de ser

fui dita.

Invólucro de argila,

molde de letra
discursiva
                    não falada.





imagem: René Magritte. L'Invention de la vie. 1928

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Espumas

Quantas vezes mais
morreria por aqueles ombros?
Sessenta e oito vezes 
adoeceria só de olhar.
Consumiria em brasa a ideia
de um perfil inteiro
à meia luz.
E não se trata apenas
de fotografia mas toda
maneira como se move.
A pose de ventania nos cabelos
semi-presos, entregues à paisagem.
A delicadeza se tornando bruta,
eu me tornando espuma
em sua margem...





imagem: Edgar Degas. Dancer (Danseuse). c.1874

terça-feira, 12 de julho de 2016

Água vária

Meu Chafariz quer ser chuva,
romper o cimento e
atravessar a estrada,
deixar de ser monumento,
de vigiar auroras.

Quer desaguar nos mangues,

marujar a letra fresca 
de jangada.
Quer mover o tempo,
se livrar da hora.

Meu Chafariz, 

ao árvore ser,
quer renascer 
do lodo de sua borda.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Enferma idade

Naveguei as pestanas
da vida como se
em correnteza me
guiasse por folha.
As pedras mais moles
rolaram por meu limo
até as margens do livro.
A chuva avisa
que não descansa
de infiltrar o poema
Jorro inundante
de doença,
palavra respiratória.








imagem: Wassily Kandinsky. Small Worlds II. 1922

Para Manoel

Quero a palavra que
sirva no boca de um
lagarto
A palavra pegajosa
despida de proeza
metafórica
Aquela que rasteja
a aspereza da própria cauda
A palavra imprópria,
desapropriada,
ancorada no vazio,
sem asas.



imagem: Marta Barros

domingo, 26 de junho de 2016

Os chafarizes de ontem
e suas velhas águas
estacionadas.
Mar morto daquilo que
- não dito - 
deixou de jorrar.
O lugar é o mesmo...
Entre os seios e 
o estômago.
Aquele ponto situado
no oco do buraco
da impossibilitância.

Pedras

Hoje aos trinta 
ainda não acostumei.
O desejo de desdizer
tudo vai e volta 
implacável.
Marmoraria na garganta,
imensa pedra de açúcar 
que não sou capaz de engolir
ou dissolver.

Ana C.

Ela me olha desde a cabeceira
com seus óculos escuros retrô
dentro de casa.
Como se em mim lesse
ao tempo em que a leio.
Evito aprofundar em
seu delírio para que
não se torne meu.
Eu e este campo de batalha,
hora erguida, outra vencida
O inimigo tão íntimo
quanto traiçoeiro
golpeia bem onde
me falha a armadura.

Folheando ruas deste outono
Minha memória escrita
num muro de lama
Neons em mau contato
tremulando à luz do dia
Sou eu aquele lambe-lambe
descolando de
umidade.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Entardecer

I.

Berro por paz...
Meu corpo circula
o mesmo espaço
de sempre e de nunca.

[espiral deposto, moinho]

A re-dor dói ainda mais.

II.

Só in verso
seremos possível.
Seremos audível
numa canção sobre pássaros.
Serás minha sabiá,
eu sua saíra.
Sairás de onde és
só metade.
Seremos
silêncio
surdo pra dor.


III.

Des espero voltar de onde jamais vim.
Lograr d’ouro lugar outro que não este aqui.
Pássara de dez encantos
voar cantos
poentes de
enfim.

IV.

Quase acidentalmente
me transformo
também
em árvore.

Pés cravados
na terra,
refém do
tempo
exato
as folhas
               me vão
                            caindo.

A vida arbusta
casca enruga tronco e
palavra já não é água
mas âmbar

arvore-sendo 
sabe-se lá como.


V.

Respiro...
Minha vida me parece
A vida de um outro.
Ela vive sem mim

e me entardece.


Perco de vista
o tempo de olhar

Violência
De estar sem estar

Arrebato a conduta
prevista, reviso
o presente ficar



Tempo

No centro do tanto
O meio do nunca

Por cima de dentro
o sumo
do nada

Escasso trato
do tempo
vário

Devhora
o dito
em mito
de hora

Estilo

Versos se
engavetam
na ruela
bruta
da fala

Levam a lama
arrastada
na letra

No beco escuro
do estilo:
Réstia de sentido.

Derradeira
paisagem.